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- Um causo gauchesco numa noite de novembro
Postado por:
Mundo Raimundo
segunda-feira, 16 de setembro de 2013
Ane Brasil escreve para a coluna Soy Contra!
Estávamos todos acampados. Quanto tempo de peleia já? Quincas
até barba na cara já tinha, Domingos estava magro, Eleutério puxando de uma
perna por conta de uma pranchada bem dada por um imperial. Compadre Leôncio
estranhou, quando deram ordem pra entrega das cartucheira. Ala pucha, então vão
deixar soldado com arma mas sem munição? De onde partiu essa ideia mal
arrumada? Ninguém respondeu. Levaram as cartucheiras, algumas armas também. Ali
permanecemos, em campo aberto, sonhando com a liberdade prometida, curando a
saudade das mulheres e filhos com alguma cachaça. Tudo parecia normal, não
fosse compadre Leôncio olhando pra mim por baixo do chapéu, aquele olhar dele
encafifado.
- Vem cá, guri, me diz: quanto tempo tu tá na peleia?
- Cheguei não sei faz quanto tempo, acho que no tempo de duas
ou três invernadas...
- E tu já é homem?
- ora... que pergunta, besta, sou homem...
- tô perguntando se tu já te deitou com mulher, piá.
Baixei a cabeça. Compadre Leôncio tinha adivinhado. Saí
novinho da fazenda para lutar com os farrapos. Tentar a liberdade pra mim e
pras minhas irmãs... Não, eu ainda não havia me deitado com mulher.
- Pues, guri, não é vergonha. Tu é guri bom, guri forte, há
de arranjar pra ti uma que se encante. Pega
esse cavalo e galopa pra bem longe daqui. AGORA.
Compadre Leôncio não era meu compadre e nem tinha batizado
filho de nenhum homem ali, mas todos o chamavam por compadre. Bom cavalariano,
excelente ferreiro e conhecedor de todos os caminhos era compadre Leôncio
responsável por ter salvado algumas vidas do nosso destacamento. Cada um
contava uma história a respeito dele. Uns diziam que tinha matado a mulher e os
filhos num acesso de loucura, outros diziam que a mulher tinha sido morta pela
sinhá no tronco, outros diziam que ele tinha matado meia dúzia de índio numa
escaramuça, mas o certo é que todos gostavam de compadre Leôncio, homem
honrado, justo, cumpridor da palavra. Não era dado a demonstrações de
sentimento. Ser chamado em particular por compadre Leôncio era quase uma
distinção. Mas aquela ordem era uma ordem pra deserção. Era uma ordem pra
desonrar meu juramento de lanceiro, pra renegar minha condição de homem, de
guerreiro... era pra renunciar à liberdade. Eu não entendi, também não ousei
retrucar, mas compadre Leôncio parecia ler na alma das pessoas. Ali, naquela
noite escura ele leu a cara de um guri assustado.
- É isso, guri, tu vai desertar pra salvá tua vida. Quem fica
aqui essa noite vai morrer e tu, guri,
eu lembro como se fosse ontem, eu pessoalmente te tirei debaixo do braço da tua
irmã Rosa e prometi pra ela que te devolvia inteiro. Sou homem de palavra.
Agora vai.
Se por um lado desertar era uma desonra, por outro lado
também não ousava contrariar o compadre Leôncio, aquele general sem divisas,
aquele estrategista sem estudo, aquele irmão de todos nós nas escaramuças.
(Talvez essa história tenha
acontecido, talvez não, talvez, talvez... nunca contaram a História dos homens
de Porongos)