Ane escreve para a coluna Soy Contra! |
Soy contra desde sempre.
Desde aquela madrugada de setembro de um longínquo ano do milênio que passou...
ali, depois de algumas horas, depois de um parto a fórceps vim ao mundo
CONTRA minha vontade. Mi madrecita conta
que nasci chorando, abrindo um enorme berreiro e assim escapei do primeiro tapa
na bunda (eu preferia que ela dissesse que eu ergui o dedo médio pro médico,
mandando-o dar tapa no cu da mãe... mas ela nega essa minha versão da
história). Pouco mais tarde fui contra as bonecas, me divertindo com os filhos
da vizinha e seus carrinhos... fui contra o leite e desde cedo reivindiquei
minha cota de cafeína...
Fui contra a minha primeira professora. Pobre “sôrALice”
– sim, na minha geração não existiam tias, apenas professoras – ela
tinha um penteado extravagante e muita paciência enquanto eu gritava: cadê as
letrinhas? Eu quero ler e escrever, eu não quero desenhar, eu vim pra escola
ler e escrever! CADÊ AS LETRINHAS??? Abandonei o jardim da infância, me mandei
pra Salvador - pra fugir do inverno - tive meu primeiro amor, ouvi Alagados no
PRÓPRIO Alagados... tudo isso aos cinco
anos de idade. Sou foda! Ok, ok, minha
mãe é foda, mas isso é outra história.
Soy contra desde sempre. Na
primeira série, já de posse das minhas primeiras letras, um belo dia me
disseram que era tradição na escola a guerra meninos versus meninas. Deveríamos
nos preparar. No dia marcado, eis que Carlos* se junta a nós, meninas. Carlos
era nosso amigo desde sempre: pulávamos corda juntos, ensaiávamos coreografia
dos Menudos juntos (putaquepariu agora entreguei a idade). Carlos era tecnicamente um menino, mas alguma
coisa nele fazia com que fosse uma de nós. E o que era pra ser um “meninas
contra meninos” virou um “todo mundo contra Carlos”. As meninas não o queriam
ali, diziam que ele seria um traidor. Os meninos o chamavam de maricas.
Chamei as meninas de idiotas, a coisa
esquentou... pela primeira vez descobri que quando um se levanta e diz SOY
CONTRA o bicho pode pegar. Doeu. Carlos me puxava pelo braço, alguém me puxou
pelos cabelos, me chamaram de macaca... Meu olhar cruzou com o de Clara, a
melhor amiga, que vinha chegando com um pirulito na mão... lembro do pirulito
voando e Clara chutando alguém, lembro de Carlos chorando e Rodrigo, o guri
mais capeta de toda a primeira série – e
minha paixão daquela semana – distribuindo sopapos pra nos defender.
Embora a dor fosse grande a certeza de ter, aos seis anos de idade, muita sorte
em escolher os meus afetos me deu uma alegria meio histérica naquele momento.
Carlos, eu, Marcelo e Clara levamos um baita xixi** na direção. Nós quatro
ficamos de castigo. Nós quatro tivemos nossos pais chamados na escola. Nós
quatro éramos os proscritos pra todo o sempre. Dois anos depois nós nos
separamos. Clara mudou de turno, Marcelo mudou de escola, eu mudei de cidade.
Carlos permaneceu na escola e eu soube mais tarde que seus anos foram difíceis.
Hoje, passados quase trinta anos, penso em Clara, em
Carlos, em Marcelo e sei que não reconheceria seus
rostos se os encontrasse na rua. Guardo ainda a imagem das crianças
desgrenhadas, em uniformes empoeirados, desfalcadas de seus dentes de leite. Aquelas crianças que ficaram em silêncio na direção diante do
olhar gelado e ameaçador da vice-diretora me ensinaram que quando um se levanta
e diz SOY CONTRA o bicho pode pegar... mas sempre haverá quem se junte para
ser contra também.
*Nomes trocados e embaralhados. Ou não, vai
saber.