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- Editora Abril: a dona da minha ida ao supermercado
Postado por:
Mundo Raimundo
sexta-feira, 19 de julho de 2013
Ingrid escreve para a coluna Desacomodação
Seria
extremamente óbvio se eu dissesse que a mídia governa massas, seus
comportamentos e sentimentos. Também seria extremamente óbvio se eu dissesse
que os diversos setores da mídia se concentram nas mãos de pouquíssimas
famílias no Brasil (e no mundo, convenhamos). Também seria extremamente óbvio
se eu dissesse naquele papo cansativo que a mídia é golpista. Seria
extremamente óbvio se eu dissesse que o papel cretino da grande mídia
brasileira fundamenta nosso sentido de felicidade, nossas buscas enquanto seres
humanos e nossas realizações pessoais e coletivas. Pois bem. Não direi absolutamente nada disto.
Porque isto é cansativo. Vou me conter de citar hoje somente a divisão sexual
de nossas idas ao supermercado.
Vamos
praticamente desenhar ao invés de dissertar. Aula de artes. Passo-a-passo:
*
Compre seu pacote de arroz, feijão, ovo, pão e banha, e dirija-se até o caixa
para pagar. Lá você encontra uma mina de ouro para ficar assimilando ideias
idiotizantes e nem se dá conta. Não, não me refiro a descobrir, através da
estante de revistas do corredor dos caixas-rápidos, que a Nina cortaria o
cabelo da Carminha no episódio 234 da novela. É muito mais do que isto. Lá você
tem a certeza de que é infeliz enquanto mulher. E lá você também tem certeza de
que se for um homem que não curte carros, playboy e futebol, não é homem.
Como
exemplo, ficaremos apenas com a Revista Cláudia, porque tudo que vem na linha
da Cláudia é tão ruim quanto e pode ser tranquilamente generalizada. Perceba
que a revista de mulher, a nossa querida Cláudia, enfatiza cansativamente as
atribuições da mulher na sociedade. SEMPRE fala em: educação de filhos, dicas
sexuais para enlouquecer os homens (aiaiaiaiai e muitas acham que aquela leitura
é super audaciosa), dicas para artificializar a idade, e principalmente, o
ponto maior de todos – dicas de como ser a gostosa em eterna dieta com coisas
milagrosas a cada edição (que nem a bisavó do editor rezando mil novenas de
reza braba conseguirá fazer funcionar).
Me
prestei a pegar algumas edições da Revista Cláudia. Não precisei ler mais do
que 3 capas para ver que todas são iguais. São enjoativamente iguais.
Na
parte inferior está escrito “dieta da água”. Hein?!? Dieta da água? Que
saudável, mulherada! Passem a água e sejam felizes! Talvez quem sabe depois
fiquem um pouco no sol e comece a nascer folhas das suas orelhas: é a
fotossíntese a mil pelo Brasil!
“Manual
prático do Liga/ Desliga masculino”. Excelente. Os homens precisam de mulheres
que lhes sirvam, que descubram seus cantinhos, que sejam utilmente boas de
cama. Caso contrário, não venha apenas saber cozinhar e lavar, pois mulher
moderna precisa aprender a servir também sexualmente.
Cabe lembrar que sexo é
troca. É desejo entre as pessoas. Não é servil. Porque ser servil o torna,
necessariamente, útil apenas aos homens. Nunca vi revista que dissesse onde é
que fica o clitóris para que possam acertar onde mexer (clitóris, que feio
falar clitóris, pois diz respeito à satisfação da mulher)
“10
bobeadas que até as mulheres inteligentes dão com dinheiro”. Sem legendas para
isto. Uma pequena frase que trata de classe e gênero. Diz-nos descaradamente
que mulheres e dinheiro não devem se misturar. Poder financeiro é propriedade
privada masculina. Depois, insinua que é comum mulheres não serem inteligentes.
E cuidem-se, pois a mulher que ousar se meter com dinheiro, precisa estar
atenta para não bobear. Tento sempre reverter coisas absurdas deste tipo para outro
gênero. Soa muito estranho: “10 bobeadas que até os homens inteligentes dão com
dinheiro”. Muito estranho, pois jamais vi a inteligência masculina ser colocada
em cheque.
“Mentira,
a hora de dormir, briga dos filhos: o jeito novo de educar”. Que audácia, a
mesma revista que diz onde é o botão de liga e desliga dos homens, fala em
educação dos filhos. Quem diria... tanta modernidade, hein? Que nada! A revista
só reforça aquilo tudo que já sabemos. Mulheres modernas hoje servem
sexualmente (sem desaprender a cozinhar) e precisam estar em eterna vigilância
na educação dos filhos. É sua responsabilidade o educar, o cuidar, o lavar, o
cozinhar, o zelar, e ainda, de quebra, trabalhar fora de casa.
Fui
então procurar uma generalização da capa de revistas masculinas.
Poderia
pegar de exemplo a Revista Placar, 4 Rodas ou até mesmo Playboy. A Veja, quem
sabe? Sabem quantas revistas falam de dicas na educação dos filhos?
Chutem...
Tá
bom, pedi demais, a Revista Placar é sobre futebol. E fala sobre futebol.
A
4 Rodas é sobre carros. E fala sobre carros.
A
Veja mente sobre política, e política é terreno de macho.
Na
Playboy, que é lida também por algumas mulheres, poderíamos encontrar então,
algo sobre isso. Claro que não, né gente, santa ingenuidade...
Bom,
no item “educar seres humanos”, o supermercado me disse que somente mulheres
leem sobre isso.
“Ame
ser você”. Como? Preciso estar em eterna dieta, não ficar velha, educar bem
meus filhos e descobrir como satisfazer meu marido em casa e ficar inventando
jeitos de ele não enjoar de mim. Não dá, é muita informação.
“Insônia
engorda”. Daí sim. Um mundo cheio de informações, coisas a fazer, contas a
pagar, receitas de felicidade... eis que? Não consigo dormir! Daí a Revista
Cláudia me lembra: insônia engorda. E a gordura feminina pode até ser admirada
por poucos que vivem no mundo real. Porém, a maioria que é regida pelo mundo da
fantasia, vive em eterna autoinsatisfação porque o botão da calça jeans está
apertando. Um dia, em vida, quero ver uma revista colocar aquele homem
barrigudo tradicional, que vemos 8
a cada 10 homens, e fazer com que sintam angústia diária
na fila do supermercado cada vez que precisarem comprar um pão. A revista não
mudará nada na vida nem de homens nem de mulheres. Mas aquela “angustiazinha”
pelo excesso de bombardeio midiático de modelo estético abarca somente a
mulher. E sintam-se satisfeitas por ter aquele barrigudo em casa, lendo Cláudia
e aprendendo onde fica o Liga/ Desliga do cidadão. Seria bem engraçado a
revista 4 Rodas dizer: “Homens, não fiquem muito tempo dirigindo porque podem
ficar com imensas barrigas por dirigirem demais!” Ou a revista Placar dizer:
“Homens, joguem bastante futebol para que suas esposas em casa admirem suas
barrigas de tanquinho”. Mas isso nunca ia acontecer. Estar no molde estético
capitalista é coisa para mulher se preocupar.
“Felicidade:
a receita do otimismo, o segredo da harmonia nas relações, antídoto contra a
solidão, etc”. Ótima. Casamentos que desandam são responsabilidade de harmonia
feminina. Antídoto contra a solidão: nunca vi revista para homens falar em solidão. Supõe-se
que a mulher precisa estar sempre em busca de príncipes encantados. E a que não
é casada é sofrenilda. Felicidade: a receita do otimismo. Hein?!? A Revista
Cláudia está me ensinando a ser feliz? Puxa, que audácia.
Esperar
para ser atendida no meio das prateleiras de chocolates, balas, Gilettes e
revistas é, para mim, uma tortura. Não acho que o mundo deva ser feito da
guerra entre gêneros, muito pelo contrário. Sou totalmente contra o sexismo, a
guerra dos sexos e as batalhas neste sentido. Falar em educação de filhos não
cabe a uma revista de moda feminina. Cabe a seres humanos, homens e mulheres.
Falar em satisfazer o outro, não cabe a responsabilidade da mulher, cabe a
seres humanos conjuntamente. Falar em saúde, é questão de homens e mulheres, e
não de revistas podres que obrigam as mulheres a serem Barbies. Falar em
felicidade, não se restringe às mulheres no sentido de consentir a vida e
estabelecer harmonia por onde passa, mas cabe sim, a sujeitos homens e mulheres
em busca de satisfações coletivas.
O
bombardeio comportamental da mídia que reforça a conduta feminina na sociedade
ocidental é tão violento e tão consentido, silencioso, sorrateiro, que
simplesmente vamos ao supermercado e voltamos não apenas com um pão na sacola,
mas com mil distorções na cachola.
Muito bom. Texto provocador, irônico, divertido e crítico. Parabéns!
ResponderExcluirRose
Me vejo na situação lendo o teu texto, não é fácil ser mulher, porque nos submetemos?
ResponderExcluirPerfeito! Tá dentro de tudo o que eu penso sobre as tais revistas "femininas"... mas, só pra bancar a chata, tem uma coisa aí que faltou: as revistas adolescentes. Elas são mini-cláudias, e vem colonizando a mente das nossas meninas desde tenra idade.
ResponderExcluirParabéns! Ainda não tinha lido um texto sobre as revistas femininas, com tanta seriedade, clareza e perfeita reflexão! Além do fato, de que as revistas estão estrategicamente colocadas ao lado das filas do caixa, onde é quase que irresistível e imperceptível não dar uma olhada, para se distrair e não se irritar com a fila! Só os títulos das matérias na capa já provocam efeitos, nem precisa comprar as revistas...
ResponderExcluirVou ter o prazer de compartilhar!
Abraços!