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Postado por:
Mundo Raimundo
domingo, 13 de outubro de 2013
Olá, prezadx leitorx
Mudando de saco pra mala: esta é minha introdução no mundo da literatura, cuja obra é assinada pelo pseudônimo de Valentina Guadalajara. Muito obrigada pela leitura deste conto que se chama Muito Pequeno.
Muito Pequeno
Era uma tarde
de domingo pouco prometedora. Abriu a garrafa, e descobriu mais uma daquelas
promoções. Preferiria ter ganhado um ioiô, uma camiseta ou um daqueles cupons
para trocar por outro do mesmo produto. Lembrou-se de quando era menino, adorava
essas técnicas de aumento de vendas, principalmente as de picolé que podiam até
chegar a oferecer um patinete ou uma bola de futebol oficial. Mas desta vez,
ele não estava muito animado.
Um enorme ser
saiu de supetão do recipiente. Colossal, musculoso, flutuava no meio da cozinha.
Gilmar via com estranhamento aquela imagem cintilante como a de um sonho junto
à janela. Trazia um turbante na cabeça, colares de ouro, os braços cruzados e
grandes pulseiras grossas, de todas as cores. Gilmar não pôde entender de que
matéria era feito o gênio, já que o galho da árvore dos fundos entrava bisbilhoteiro
pela janela e transpassava a sua massa etérea, “o que eles não inventam?”-
refletiu. Pensou que talvez essas promoções começassem agora nesta época justo
porque nos preparamos para o verão, a época de morrer de sede, sendo assim, em
alguns poucos meses, já teriam toda uma horda de consumidores adestrados e afeitos
a adquirir a bebida x ou y. “Globalização, que grande engodo!” – concluiu.
- Muito prazer,
querido amo. Eu sou o gênio da garrafa e o senhor tem direito a um pedido.
- Ah, essa é
fácil: eu quero ser o homem mais rico do mundo!
- Amo, o
senhor deve ler o que diz a tampinha, eu só posso conceder um tipo de desejo.
Gilmar lê a
tampa que diz: “Parabéns, você ganhou! O gênio da garrafa vai lhe conceder um
desejo. O seu código é 462NKLm3oP098. Divirta-se e siga tomando Kutirrut para ganhar mais prêmios.”
Gilmar, um
pouco indiferente, dirigi-se ao gênio:
- Ok, meu
código é quatro, seis, dois, ene, cá, ele, eme, três, ô, pê, ô, noventa e oito.
- Código
incorreto, senhor.
- Vou repetir:
quatro, seis, dois, ene, cá, ele, eme, três, ô, pê, ô, nove, oito.
- Código
incorreto, senhor.
- impossível:
quatro, seis, dois, ene, cá, ele, eme, três, ô, pê, ô, nove, oito!!!
- Código
incorreto, senhor. Permita-me uma intromissão: o código tem maiúsculas e
minúsculas?
- Eu não posso
acreditar! Ok, mais uma vez: quatro, seis, dois, ene maiúsculo, cá maiúsculo,
ele maiúsculo, eme minúsculo, três, ô minúsculo, pê maiúsculo, ô maiúsculo,
nove, oito.
- Código
incorreto, senhor. Por favor, leia esse manual de ajuda com perguntas úteis
feito especialmente para os premiados.
O gênio retira
debaixo do turbante o manual um pouco amassado, amarelado, com as pontas
dobradas.
- Está todo molhado
isso... que nojo, é suor?
O gênio fica
um pouco envergonhado.
- Perdão, amo,
mas hoje faz 28 graus. E dentro da garrafa fazia mais porque o vidro conserva o
calor, e mesmo que a bebida esteja...
Gilmar deixa
de dar atenção e senta-se num banquinho. Pega o manual com o pano de prato e, mais
indignado que ansioso, começa a lê-lo. Encontra a sessão de erros de código
logo após a sessão de problemas com gênios que falam uma língua estrangeira sem
legenda. Descobre o erro.
- Vamos de
novo: quatro, seis, dois, ene maiúsculo, cá maiúsculo, ele maiúsculo, eme
minúsculo, ô minúsculo, pê maiúsculo, zero, nove, oito.
- Código
correto, senhor, muito obrigado. Aguarde um instante que em seguida lhe
revelarei qual o seu tipo de pedido.
- Ah, eu quero
fazer uma reclamação. Não pode ser que vocês coloquem zero e a letra ó, porque
a gente se confunde!
- Aguarde um
minutinho enquanto registro a sua reclamação e a repasso ao setor
correspondente.
Gilmar serve
um copo da bebida enquanto observa o gênio que, piscando repetidamente os olhos,
vai mudando de tonalidade, fazendo ruídos curiosos. Finalmente a cozinha toda
se ilumina e o gênio fala com tom grandiloquente:
- Meu amo, lhe
é concedido fazer uma viagem no tempo e poder alterar um fato no passado.
Um punhal
transpassa-lhe o peito. Gilmar, estupefato, abandona o gênio na cozinha e
senta-se no sofá. Meu Deus, o que ele poderia mudar?! Matar Cristovão Colombo?
Napoleão? Hitler? Desmentir a bíblia? Revelar os segredos da construção das
pirâmides? Tudo isso seria uma grande obra, certamente. No entanto, quem
acreditaria no reles Gilmar se ele revelasse algum grande mistério? E ainda,
teria ele coragem de matar alguém? E se matasse, não surgiria outro que
cometesse o mesmo desastre? Cabeça baixa, punho sustentando o queixo, boca
contraída, olhos apertados atravessando o chão da sala.
Passam-se
alguns minutos e lhe vem à mente sua situação atual. Está sofrendo há alguns
meses pelo término de uma relação. Ele se sente só. Lembra-se da cena final,
uma choradeira em frente à porta da casa dela, fazia frio. Queria abraçá-la, cercava
seu corpo, mas não podia senti-lo pela quantidade de casacos que vestia, queria
experimentar mais uma vez o cheiro, mas tinha o nariz constipado. “Claudia”,
repetiu triste depois de um suspiro.
Poderia voltar
à semana anterior ao término, quando estavam abraçados na cama. Porém, antes
daquela noite haviam tido uma briga, dessas que se discute e nunca encontra um
final. O motivo da discórdia: maldita Manoela.
Ele conhecera
Manoela numa tarde. Encantara-se quando ela lhe pediu fogo e começou a discorrer
de maneira poética sobre o vício e a condição humana. Depois dessa, muitas
tardes de domingo. E sem motivo aparente, Manoela foi desaparecendo. Ele, inconformado,
a seguia insistentemente nas redes sociais. Noites e noites no Facebook
curtindo, compartilhando e comentando todos os posts dela, e assim sua tristeza foi ficando aparente: dedos
inchados, as unhas roídas, os cigarros amontoados no cinzeiro, miopia
aumentando. Claudia descobriu, mas insistiu. Manoela se foi definitivamente.
E se talvez
ele nem sequer tivesse começado a relação com a namorada e estivesse livre no
momento em que Manoela aparecesse? Uma possibilidade.
Fazia quase um
ano, Gilmar havia ido veranear com um casal de amigos. Havia feito aquela
viagem sem nenhuma pretensão, já inclusive arrependido, pois saía de férias com
um casal que fala com voz de bebê. O que ele não esperava era que sua amiga
encontraria uma velha colega da escola: Cláudia. Esta passou a sair com os três
amigos todos os dias e Gilmar e ela se apaixonaram.
Como seriam essas
férias sem Cláudia?
De repente,
tudo tomou forma e os olhos arregalaram-se. Gilmar levanta-se do sofá muito
decidido, marcha até a cozinha, encara o gênio e profere:
- Quero voltar
ao dia de ontem, exatamente às 18h35, na rua Canin 656.
- Seu pedido é
uma ordem.
Um vento muito
forte começa a soprar, tão forte que Gilmar tem de fechar os olhos. Seu corpo
começa a flutuar, perde o equilíbrio e cai. Quando abre os olhos, alguns
transeuntes o estão levantando da calçada, olha para a direita e vê “656”. Recompõe-se,
agradece às pessoas, e caminha em direção ao supermercado. Ao passar pela
porta, cruza-se com um espelho e se vê com a roupa que vestia no dia anterior. Alguns
metros depois, intercepta uma distraída senhora que procura em uma lata a data
de validade:
- Com licença,
a senhora tem horas?
- São seis e
trinta e sete.
Gilmar, certo
de que seu pedido fora realizado, encaminha-se ao corredor de bebidas. Olha de
soslaio a garrafa de Kutirrut, e, orgulhoso,
leva uma de água mineral.
Valentina Guadalajara